O cristianismo puro e simples
C. S. Lewis
– A Lei da Natureza Humana consiste não só nas leis da química, mas no conhecer o certo e errado que aprendemos desde cedo. E esta nós escolhemos obedecer ou não, diferentemente da gravitação.
– Se essa Lei não existisse qual ser o sentido de tratar o justo do injusto? A verdade é que nós não respeitamos sempre essa lei. E quando isso ocorre, logo temos diversas desculpas ou tentamos transferir para os outros a responsabilidade pelo erro.
– Os seres humanos, em todas as regiões da Terra, possuem a singular noção de que devem comportar-se de certa maneira, e, por mais que tentem, não conseguem se livrar dessa noção, e na prática não se comportam dessa maneira. Os homens conhecem a Lei Natural e transgridem-na. Esses dois fatos são o fundamento de todo pensamento claro a respeito de nós mesmos e do universo em que vivemos.
– Se deixarmos de lado o senso de justiça, logo estaremos violando acordos e falsificando provas judiciais em prol do “bem da humanidade”. Teremos então nos tornado homens cruéis e desleais.
– O progresso não significa apenas uma mudança, mas uma mudança para melhor.
– A Lei da Natureza Humana nos diz o que devemos fazer e não fazemos.
– Certas pessoas dizem que, apesar de a boa conduta não ser o que traz vantagens para cada pessoa individualmente, pode significar o que traz vantagens para a humanidade como um todo; e, portanto, a coisa não seria tão misteriosa.
– Os homens devem ser altruístas, devem ser justos. Não que os homens sejam altruístas ou gostem de sê-lo, mas que devem sê-lo, para o bem da sociedade.
– Quando abro o Ser Humano chamado “Eu”, descubro que não existo por mim mesmo, mas que vivo sob uma lei, que algo ou alguém quer que eu me comporte de determinada forma.
– Todos nós desejamos o progresso, não há nada de progressista em ser um cabeça-dura que se recusa a admitir o erro.
– O cristianismo exorta as pessoas a se arrepender e promete-lhes o perdão. Quando você sabe que está doente, dá ouvidos ao médico. Quando reconhece que é um pecador, o cristianismo faz sentido.
– Em longo prazo, a religião cristã traz um consolo indescritível;
“Se você é cristão, não precisa acreditar que todas as outras religiões estão simplesmente erradas de cabo a rabo. Se você é ateu, é obrigado a acreditar que o ponto de vista central de todas as religiões do mundo não passa de um gigantesco erro. Se você é cristão, está livre para pensar que todas as religiões, mesmo as mais esquisitas, possuem pelo menos um fundo de verdade.” Pg 19
“As pessoas que acreditam em Deus podem ser agrupadas de acordo com o tipo de Deus em que acreditam.” Existem 2 linhas de pensamento de Deus = panteísta (Ele está acima do bem e do mal: e se o universo não existisse, Deus também não existiria, pois todos os seres do universo fazem parte dele) e cristão (Deus inventou e criou o universo como um homem que pinta um quadro ou compõe uma música com sua infinita habilidade)
“Dualismo é a crença de que, na raiz de todas as coisas, há duas forças iguais e independentes, uma delas boa, a outra má.” Pg 21
“As pessoas são cruéis por um de dois motivos: por sadismo, ou seja, por causa de uma perversão sexual que faz da dor um objeto de prazer sensual, ou pela busca de algum benefício externo – dinheiro, poder, segurança”
Para ser mau, ele tem de querer algo de bom e buscá-lo da forma errada: tem de ter impulsos originariamente bons para depois pervertê-los.
Quando algo é opcional, metade das pessoas não o cumprirá.
Deus criou coisas dotadas de livre-arbítrio: criaturas que podem fazer tanto o bem quanto o mal. Se uma coisa é livre para o bem, é livre também para o mal. Um mundo feito de autômatos — criaturas que funcionassem como máquinas – não valeria a pena ser criado.
Deus nos quer de forma livre e voluntária.
Discutir com Deus é: Quando discutimos com ele, estamos na verdade discutindo contra o próprio poder que nos tornou capazes de discutir: é como se cortássemos o galho no qual estamos sentados.
O que Satanás colocou na cabeça dos nossos remotos ancestrais foi a ideia de que poderiam “ser como deuses” — poderiam bastar-se a si mesmos como se fossem seus próprios criadores; poderiam ser senhores de si mesmos e inventar um tipo de felicidade fora e à parte de Deus. Dessa tentativa, que não pode dar certo, vem quase tudo o que chamamos de história humana: o dinheiro, a miséria, a ambição, a guerra, a prostituição, as classes, os impérios, a escravidão – a longa e terrível história da tentativa do homem de descobrir a felicidade em outra coisa que não Deus. Pg 23
Deus concebeu a máquina humana para ser movida por ele mesmo. Esse é o motivo pelo qual não podemos pedir que Deus nos faça felizes e ao mesmo tempo não dar a mínima para a religião.
Jesus é o Filho de Deus, ou não passa de um louco ou coisa pior. Você pode querer calá-lo por ser um louco, pode cuspir nele e matá-lo como a um demônio; ou pode prosternar-se a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas que ninguém venha, fale que ele não passava apenas de um grande mestre humano. Ele não nos deixou essa opção, e não quis deixá-la.
A principal crença cristã é que a morte de Cristo de algum modo acertou nossas contas com Deus e nos deu a possibilidade de começar de novo. Fomos absolvidos do castigo porque Cristo se ofereceu para ser castigado em nosso lugar.
Esse processo de rendição, movimento de marcha a ré a toda velocidade, é o que o cristianismo chama de arrependimento. Porém, este não é simples, significa matar uma parte de si mesmo e submeter-se a uma espécie de morte.
Noventa e nove por cento das coisas em que acreditamos são cridas em função da autoridade de alguém. O homem comum acredita no sistema solar, nos átomos, na evolução e na circulação do sangue por causa da autoridade de alguém – porque os cientistas o afirmam.
O organismo vivo não se caracteriza por nunca se ferir, mas sim por ter um poder, mesmo que limitado, de recuperação. Da mesma forma, o cristão não é um homem que nunca erra, mas um homem capaz de se arrepender, de levantar a cabeça e seguir em frente após cada queda. Ele é assim porque a vida de Cristo está dentro dele, sempre pronta para recuperá-lo, habilitando-o a imitar (em certa medida) a morte voluntária que o próprio Cristo levou a cabo. Pg 27
Quando dizemos que Cristo está em nós, não é uma mera maneira de dizer que estão pensando em Cristo ou tentando imitá-lo. Querem dizer que Cristo opera de fato através deles; que a massa dos cristãos é o organismo físico pelo qual Cristo age — que nós somos seus dedos e músculos, as células de seu corpo.
Deus tarda a aparecer para nos dar essa chance, que não durará para sempre. Nós escolhemos pelo caminho certo ou errado.
A maioria das pessoas vê a moral como algo que se intromete em nossa vida e nos impede de ter momentos agradáveis. Porém, toda regra moral existe para prevenir o colapso, a sobrecarga ou uma falha de funcionamento da máquina.
A moral engloba 3 fatores: harmonia entre indivíduos, harmonização das coisas dentro do indivíduo e objetivo geral da vida humana como um todo. Hoje em dia falamos muito da harmonia entre as pessoas, mas não nos preocupamos com a interior, ou seja, nos enganamos.
É impossível tornar o homem bom pela força da lei; e, sem homens bons, não pode haver uma boa sociedade. É por isso que temos de começar a pensar no segundo fator: a moral dentro de cada indivíduo. Pg 30
4 virtudes fundamentais: prudência (sabedoria prática, parando para pensar nos atos e nas consequências*), temperança (moderação, não passar dos limites**), justiça (honestidade, reciprocidade e cumprimento da palavra) e fortaleza (2 tipos de coragem, que suporta a dor e que nos faz enfrentar o perigo).
*Deus quer de nós um coração de criança, mas uma cabeça de adulto.
**Deus, porém, não se deixa enganar pelas aparências.
A verdadeira função do mestre moral é a de sempre nos trazer de volta, dia após dia, aos velhos e simples princípios que tanto nos esforçamos para não ver. Pg 33
Em outras palavras, se nossos gastos com conforto, bens supérfluos, diversão etc. se igualam ao do padrão dos que ganham o mesmo que nós, provavelmente não estamos dando o suficiente. Pg 34
Se a caridade que fazemos não pesa pelo menos um pouco em nosso bolso, ela está pequena demais.
Às vezes, também o orgulho atrapalha a caridade; somos tentados a gastar mais do que devíamos em formas vistosas de generosidade (gorjetas, hospitalidade) e menos com aqueles que realmente necessitam do nosso auxílio.
Posso repetir “faça aos outros o que gostaria que fizessem para você” até cansar, mas não conseguirei viver assim se não amar ao próximo como a mim mesmo; só poderei aprender esse amor quando aprender a amar a Deus; e só aprenderei a amá-lo quando aprender a obedecê-lo.,
A psicanálise não esta em contradição com o cristianismo, seria até recomendável que os cristãos soubessem um pouco dela. Porém elas não seguem o mesmo curso, pois não tem o mesmo objetivo.
Moralidade sexual
Não se deve confundir a regra cristã da castidade com a regra social da “modéstia”, no sentido de pudor ou decência. A regra social do pudor estipula quais partes do corpo podem ser mostradas e quais assuntos podem ser abordados, e de que forma, de acordo com os costumes de determinado círculo social. Logo, enquanto a regra da castidade é a mesma para todos os cristãos em todas as épocas, a regra do pudor muda. Uma moça das ilhas do Pacífico, praticamente nua, e uma dama vitoriana completamente coberta, podem ambas ser igualmente “modestas”, pudicas e decentes de acordo com o padrão da sociedade em que vivem.
E as mulheres podem excitar o desejo sexual por descuido / ignorância ou por má educação. E para resolver o dilema entre os jovens vistos como depravados e os mais velhos vistos como puritanos, resolverá: O desejo sincero de pensar sempre o melhor do próximo e de tornar-lhe a vida mais confortável resolverá a maior parte desses problemas.
Não existe muita gente que queira comer coisas que não são alimentos ou que goste de usar a comida em outras coisas que não a alimentação. Em outras palavras, as perversões do apetite alimentar são raras. As perversões do instinto sexual, porém, são numerosas, difíceis de curar e assustadoras.
Dizem que o sexo se tornou um problema grave porque não se falava sobre o assunto. Nos últimos vinte anos, não foi isso que aconteceu. Todo o dia se fala sobre o assunto, mas ele continua sendo um problema. Se o silêncio fosse à causa do problema, a conversa seria a solução. Bem sei que alguns cristãos de mente tacanha dizem por aí que o cristianismo julga o sexo, o corpo e o prazer como coisas intrinsecamente más. Mas estão errados. O cristianismo exaltou o casamento mais que qualquer outra religião; e quase todos os grandes poemas de amor foram compostos por cristãos. Se alguém disser que o sexo, em si, é algo mau, o cristianismo refuta essa afirmativa instantaneamente.
E crescemos cercados de propaganda a favor da libertinagem. Existem pessoas que querem manter o nosso instinto sexual em chamas para lucrar com ele; afinal de contas, não há dúvida de que um homem obcecado é um homem com baixa resistência à publicidade. Deus conhece nossa situação; ele não nos julgará como se não tivéssemos dificuldades a superar. O que realmente importa é a sinceridade e a firma vontade de superá-las.
Cartaz após cartaz, filme após filme, romance após romance associam a ideia da libertinagem sexual com as ideias de saúde, normalidade, juventude, franqueza e bom humor. Essa associação é uma mentira. Como toda mentira poderosa, é baseada numa verdade – a verdade reconhecida acima de que o sexo (à parte os excessos e as obsessões que cresceram ao seu redor) é em si “normal”, “saudável” etc. A mentira consiste em sugerir que qualquer ato sexual que você se sinta tentado a desempenhar a qualquer momento seja também saudável e normal.
Muitas pessoas se sentem desencorajadas de tentar seriamente seguir a castidade cristã porque a consideram impossível (mesmo antes de tentar). Porém a castidade humana não será alcançada apenas pelo nosso esforço, precisamos pedir ajuda de Deus. Muitas vezes, a primeira ajuda de Deus não é a própria virtude, mas a força para tentar de novo.
Para discutir, pg 39: Se alguém pensa que os cristãos consideram a falta de castidade o vício supremo, essa pessoa está redondamente enganada. Os pecados da carne são maus, mas, dos pecados, são os menos graves. Todos os prazeres mais tetríveis são de natureza puramente espiritual: o prazer de provar que o próximo está errado, de tiranizar, de tratar os outros com desdém e superioridade, de estragar o prazer, de difamar. São os prazeres do poder e do ódio. Isso porque existem duas coisas dentro de mim que competem com o ser humano em que devo tentar me tornar. São elas o ser animal e o ser diabólico. O diabólico é o pior dos dois. E por isso que um moralista frio e pretensamente virtuoso que vai regularmente à igreja pode estar bem mais perto do inferno que uma prostituta. E claro, porém, que é melhor não ser nenhum dos dois.
As pessoas gostam de raciocinar com os termos “bom” e “mau”, não com os termos “bom”, “melhor” e “o melhor de todos”, e “ruim”, “pior” e “o pior de todos”. A coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como padrão a ser seguido custe o que custar.
Sobre o amor…
E, o que quer que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: “E viveram felizes para sempre”, quisesse dizer que “pelos cinquenta anos seguintes sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento”, estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável. Quem conseguiria viver nesse estado de excitação mesmo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do sono, das amizades? E claro, porém, que o fim da paixão amorosa não significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido – distinto da “paixão amorosa” – não é um mero sentimento. E uma unidade profunda, mantida pela vontade e deliberadamente reforçada pelo hábito; é fortalecida ainda (no casamento cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele recebem. Eles podem fruir desse amor um pelo outro mesmo nos momentos em que se desgostam, da mesma forma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gostamos da nossa pessoa. Conseguem manter vivo esse amor mesmo nas situações em que, caso se descuidassem, poderiam ficar “apaixonados” por outra pessoa. Foi a “paixão amorosa” que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cumpram o juramento. E através desse amor que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento. As pessoas tiram dos livros a ideia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá “apaixonado” para sempre.
Um grande número de pessoas parece pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o divórcio difícil para todo o mundo. Eu não penso assim. Pelo menos creio que ficaria bastante zangado se os muçulmanos tentassem proibir que o restante da população tomasse vinho. Minha opinião é que as Igrejas devem reconhecer francamente que a maioria dos britânicos não são cristãos, e, portanto, não se deve esperar que levem uma vida crista. Deve haver dois tipos distintos de casamento: um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro governado pela Igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A distinção entre os dois tipos deve ser bastante nítida, de tal forma que se saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela Igreja e quais não.
“Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.” Não há a menor insinuação de que exista outra maneira de obtermos o perdão. Está perfeitamente claro que, se não perdoarmos, não seremos perdoados. Não há alternativa. O que podemos fazer?
O primeiro passo é perdoar as pessoas que estão a nossa volta. Depois, tentar entender o que é amar o próximo como a si mesmo. Amar meus inimigos não é o mesmo que considerá-los boas pessoas, ou concluir que meus inimigos não são “tão maus”. É odiar o pecado, mas não o pecador.
Será que amar o inimigo quer dizer que não devemos puni-lo? Não, de maneira alguma. O amor que sinto por mim não me exime do dever de me submeter à punição — nem mesmo à morte. Podemos punir, se isso for necessário, mas não devemos gostar de punir.
O que a Bíblia quer dizer com o amor ao próximo: desejar o seu bem, sem ter de sentir afeto nem dizer que ele é gentil quando não é. Não é amar as qualidades, mas simplesmente porque cada um de nós é um “eu”.
Orgulho: De acordo com os mestres cristãos, o vício fundamental, o mal supremo, é o orgulho. A devassidão, a ira, a cobiça, a embriaguez e tudo o mais não passam de ninharias comparadas com ele. E por causa do orgulho que o diabo se tornou o que é. O orgulho leva a todos os outros vícios; é o estado mental mais oposto a Deus que existe.
Se me sinto incomodado porque outra pessoa fez mais sucesso na festa, é porque eu mesmo queria ser o grande sucesso. O prazer do orgulho não está em se ter algo, mas somente em se ter mais que a pessoa ao lado.
Dizemos que uma pessoa é orgulhosa por ser rica, inteligente ou bonita, mas isso não é verdade. As pessoas são orgulhosas por serem mais ricas, mais inteligentes e mais bonitas que as outras. Se todos fossem igualmente ricos, inteligentes e bonitos, não haveria do que se orgulhar. Eliminado o elemento de competição, o orgulho se vai. Os cristãos estão com a razão: o orgulho é a causa principal da infelicidade em todas as nações e em todas as famílias desde que o mundo foi criado.
Sempre que constatamos que nossa vida religiosa nos faz pensar que somos bons — sobretudo, que somos melhores que os outros —, podemos ter certeza de que estamos agindo como marionetes, não de Deus, mas do diabo. A verdadeira prova de que estamos na presença de Deus é que nos esquecemos completamente de nós mesmos ou então nos vemos como objetos pequenos e sujos. O melhor é esquecer-nos de nós mesmos.
A pessoa vaidosa precisa do elogio, do reconhecimento, mas isso não é tão grave, pois mostra que ela se importa com a opinião das pessoas. O orgulho diabólico nasce quando desprezamos tanto os outros que não mais levamos em consideração o que pensam de nós. Devemos nos esforçar para não sermos vaidosos, mas não devemos jamais nos valer do orgulho para curar a vaidade.
Se alguém quer adquirir a humildade, creio poder dizer-lhe qual é o primeiro passo: é reconhecer o próprio orgulho. Aliás, é um grande passo. O mínimo que se pode dizer é que, se ele não for dado, nada mais poderá ser feito.
Caridade: hoje significa simplesmente o que antes se chamava “esmola” — ou seja, o que damos para os pobres. A caridade significa “amor no sentido cristão”. Mas o amor no sentido cristão não é uma emoção. Não é um estado do senti mento, mas da vontade: aquele estado da vontade que temos naturalmente coma nossa pessoa, mas devemos aprender a ter com as outras pessoas.
Nós temos “afinidade” ou “afeição” em relação a algumas pessoas,mas não a outras. E importante entender que essa”afinidade”ou “gosto”não é nem um pecado nem uma virtude, como tampouco o são nossas preferências pessoais de alimentação. É somente um fato. É claro, porém, que nossas atitudes em relação a esses gostos podem ser pecaminosas ou virtuosas.
Não perca tempo perguntando-se se você “ama” o próximo ou não; aja como se amasse. Assim que colocamos isso em prática, descobrimos um dos maiores segredos. Quando você se comporta como se tivesse amor por alguém, logo começa a gostar dessa pessoa.
O amor cristão, seja para com Deus, seja para com os homens, é um assunto da vontade. Se nos esforçamos para obedecer à sua vontade, estamos cumprindo o mandamento “Amarás o Senhor teu Deus”. Ele nos dará o sentimento do amor se assim desejar.
Esperança: A maioria de nós acha muito difícil desejar o “Paraíso” – a não ser que por esse nome queiramos dizer o encontro com os amigos que já morreram. Uma das razões dessa dificuldade é que não tivemos uma boa formação: toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo. Outra razão é que, quando o verdadeiro anseio pelo Paraíso está presente em nós, não o reconhecemos.
(1) A Via do Tolo — Ele põe a culpa nas próprias coisas. Passa a vida toda a conjectutar que, se arranjasse
outra mulher, fizesse uma viagem mais cara, ou seja lá o que for, conseguiria dessa vez capturar essa coisa misteriosa que todos nós procuramos. A maior parte dos ricos entediados e descontentes do nosso mundo são desse tipo. Eles passam a vida toda pulando de uma mulher para outra (com a ajuda dos tribunais), de continente para continente, de passatempo para passatempo, sempre na esperança de que o último será, enfim, “a coisa certa”, e sempre decepcionados.
(2) A Via Cristã – Dizem os cristãos: “As criaturas não nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome: bem, existe o alimento. Um patinho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o desejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um desejo que nenhuma experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo. Se nenhum dos prazeres terrenos satisfaz esse desejo, isso não prova que o universo é uma tremenda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para despertá-lo e sugerir a verdadeira satisfação. Se assim for, tenho de tomar cuidado, por um lado, para nunca desprezar as bênçãos terrenas nem deixar de ser grato por elas; por outro, para nunca tomá-las pelo ‘algo a mais’ do qual são apenas a cópia, o eco ou a miragem, Tenho de manter viva em mim a chama do desejo pela minha verdadeira terra natal, a qual só encontrarei depois da morte; e jamais permitir que ela seja arrasada ou caia no esquecimento.Tenho de fazer com que o principal objetivo de minha vida seja buscar essa terra e ajudar as outras pessoas a buscá-la também.
Não devemos nos preocupar com os irônicos que tentam ridicularizar a esperança cristã do “Paraíso” dizendo que “não querem passar a eternidade tocando harpa”. A resposta que devemos dar a essas pessoas é que, se elas não entendem os livros que são escritos para adultos, não devem palpitar sobre eles. Todas as imagens das Escrituras (as harpas, as coroas, o ouro etc.) são, obviamente, uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os instrumentos musicais são mencionados porque, para muita gente (não todos), a música é o objeto conhecido nesta vida que mais forte mente sugere o êxtase e a infinitude. A coroa é mencionada para nos dar a entender que todo aquele que estiver reunido com Deus na eternidade tem parte no seu esplendor, no seu poder e na sua alegria. O ouro é citado para nos dar a idéia da eternidade do Paraíso (o ouro não enferruja) e também da sua preciosidade. As pessoas que entendem esses símbolos literalmente poderiam também pensar que, quando Cristo nos exortou a ser comoas pombas, quis dizer que deveríamos botar ovos.
Fé: A partir do momento em que a mente humana aceita algo como verdadeiro, vai automaticamente continuar considerando-o verdadeiro até encontrar um bom motivo para reconsiderar essa opinião.
A fé, no sentido em que estou usando a palavra, é a arte de se aferrar, apesar das mudanças de humor, àquilo que a razão já aceitou. Pois o humor sempre há de mudar, qualquer que seja o ponto de vista da razão. Agora que sou cristão, há dias em que tudo na religião parece muito improvável.
Se não colocar os humores em seu devido lugar, você não poderá jamais ser um cristão firme ou mesmo um ateu firme; será apenas uma criatura hesitante, cujas crenças dependem, na verdade, da qualidade do clima ou da sua digestão naquele dia. Conseqüentemente, temos de formar o hábito da fé.
se você já aceitou o cristianismo, é garantir que algumas de suas principais doutrinas sejam mantidas deliberadamente diante dos olhos de sua mente por alguns momentos do dia, todos os dias. É por esse motivo que as orações diárias, as leituras religiosas e a freqüência aos cultos são partes necessárias da vida cristã. Temos de nos recordar continuamente das coisas em que acreditamos. Nem essa crença nem nenhuma outra podem permanecer vivas automaticamente em nossa mente.
Deus está à espera do momento em que você vai descobrir que jamais conseguirá tirar a nota mínima para passar nesse exame, e não poderá jamais deixá-lo em dívida. Todas as faculdades que você possui, sua faculdade de pensar ou de mover os membros a cada momento, lhe são dadas por Deus. Mesmo se dedicasse cada momento de sua vida exclusivamente ao seu serviço, você não poderia dar-lhe nada que, em certo sentido, já não lhe pertencesse. Logo, quando uma pessoa diz que faz algo para Deus ou lhe dá algo, é como se fosse uma criança pequena que interpelasse o pai e lhe pedisse: “Papai, me dê cinquenta centavos para lhe comprar um presente de aniversário.” E claro que o pai dá o dinheiro e fica contente com o gesto do filho. Tudo é muito bonito e muito correto, mas só um imbecil acharia que o pai lucrou cinquenta centavos com a transação. Quando o homem descobre essas duas coisas, Deus pode realmente começar a agir. E depois disso que a verdadeira vida começa.
Só podemos descobrir que somos incapazes de cumprir a Lei de Deus depois de tentar
cumpri-la com todas as nossas forças (e fracassar em seguida). Se não tentarmos, continuaremos pensando em nosso íntimo que, se nos esforçarmos mais na próxima vez, conseguiremos ser completamente bons. Assim, em certo sentido, a estrada que nos leva de volta a Deus é a do esforço moral, a via da auto-superação. Mas, em outro sentido, não é o esforço que nos levará para casa.
É a mudança do sentimento de confiança em nossos próprios esforços para um estado em que nos desesperamos completamente e deixamos tudo nas mãos de Deus.
É claro que deixar tudo nas mãos de Cristo não significa que devemos parar de nos esforçar. Confiar nele significa tentar fazer tudo o que ele disse. Não há sentido em dizer que confiamos em tal pessoa se não aceitamos seus conselhos. Logo, se você realmente se entregou nas mãos dele, conclui-se daí que está tentando obedecer-lhe.
Não está fazendo essas coisas para ser salvo, mas porque ele já começou a salvá-lo.
Livro IV ALÉM DA PERSONALIDADE OU OS PRIMEIROS PASSOS NA DOUTRINA DA TRINDADE
Se seguíssemos os conselhos de Cris to, viveríamos em breve num mundo mais feliz. Nem precisaríamos ir tão longe: se déssemos ouvidos ao que disseram Platão, Aristóteles ou Confúcio, estaríamos muito melhor do que estamos.E daí?Nunca seguimos os conselhos dos grandes mestres. Se o cristianismo não passa de mais um bocado de conselhos, ele não tem importância nenhuma. Não nos faltaram bons conselhos nos últimos quatro mil anos.Um pouquinho mais não faz diferença.
O que Deus gera é Deus, assim como o que o homem gera é homem.O que Deus cria não é Deus, assim como o que o homem faz não é homem.É por isso que os homens nãosãofilhos de Deus no mesmo sentido em que Cristo o é. Podem se parecer com Deus em certos aspectos, mas não são coisas da mesma espécie. Os homens são mais semelhantes a estátuas ou quadros de Deus.
Um homem gera uma criança, mas cria uma estátua. Deus gerou o Cristo, mas fez o homem.
Um homem resumiu para mim a situação: “Acredito em Deus, mas não consigo engolir a idéia de que atenda a centenas de milhões de pessoas que se dirigem a ele num mesmo momento.” E constatei que muita gente pensa do mesmo modo. A maioria das pessoas é capaz de imaginar Deus atendendo a um número infinito de peticionários, desde que cheguem um por vez e ele tenha um tempo infinito para atendê-los. Assim, o que está na raiz desta dificuldade é a ideia de que Deus tenha de fazer muitas coisas numa única fração de tempo.
Deus não está no tempo. A vida dele não consiste em momentos que são seguidos por outros momentos. Deus não precisa se afobar no fluxo de tempo deste universo, assim como um escritor não precisa viver o tempo imaginário de seu romance.
A BOA INFECÇÃO
O Filho existe porque o Pai existe, mas nunca houve um tempo em que o Pai não houvesse ainda gerado o Filho.
Pessoas de todos os tipos gostam de repetir a afirmação cristã de que “Deus é amor”. Elas não se dão conta de que essas palavras só podem significar alguma coisa se Deus contiver pelo menos duas pessoas. O amor é algo que uma pessoa sente por outra. Se Deus fosse uma única pessoa, não poderia ter sido amor antes da criação do mundo.
A oferta que o cristianismo faz se resume no seguinte: se deixarmos Deus agir, poderemos vir a compartilhar da vida de Cristo. Então, partilharemos de uma vida que foi gerada, não criada; uma vida que sempre existiu e sempre existirá.Cristo é o Filho de Deus. Se participarmos desse tipo de vida,também seremos filhos de Deus.
Todo cristão deve tornar-se um pequeno Cristo.
O Filho de Deus se fez homem para que os homens pudessem tornar-se filhos de Deus. Não sabemos coisas seriam se a raça humana nunca tivesse se rebelado contra Deus e se aliado ao inimigo. Talvez todos os homens vivessem “em Cristo”, compartilhassem desde o nascimento a vida do Filho de Deus.
Nós, indivíduos, temos de nos apropriar dessa salvação. Mas o trabalho pesado que nunca conseguiríamos levar a cabo sozinhos – já foi feito. Não precisamos tentar escalar a vida espiritual pela nossa própria força, pois ela já desceu sobre a raça humana. Se simplesmente nos abrirmos ao Homem que a possuiu em sua plenitude, Homem que, apesar de ser Deus, também é verdadeiramente humano, ele a fará funcionar em nós e por nós.
Podemos dizer que Cristo morreu por nossos pecados. Podemos dizer que o Pai nos perdoou porque Cristo fez por nós o que deveríamos ter feito por conta própria. Podemos dizer que fomos banhados no sangue do Cordeiro. Ou, ainda, que Cristo venceu a morte.
O cristianismo não concebe os indivíduos humanos como meros membros de um grupo, ou itens numa lista, mas como órgãos num corpo – uns diferentes dos outros, e cada qual oferecendo uma contribuição própria e insubstituível. Quando você se flagrar tentando transformar seus filhos, alunos ou até vizinhos em pessoas exatamente iguais a você, lembre-se de que Deus provavelmente não quis que eles fossem assim. Você e eles são órgãos diferentes, com finalidades diferentes. Por outro lado, quando você se sentir tentado a não se incomodar com os problemas de alguém porque eles “não lhe dizem respeito”, lembre-se de que, apesar de essa pessoa ser diferente de você, ela faz parte do mesmo organismo. Se esquecer esse fato, você se tornará um individualista. Se, por outro lado, esquecer que
ela é um órgão diferente, quiser suprimir as diferenças e fazer todas as pessoas iguais, tornar-se-á um totalitário.
Há uma porção de coisas que sua consciência não vai achar especialmente erradas (especialmente coisas que passam pela sua cabeça), mas que você percebe de imediato que são inaceitáveis para quem faz um esforço sério para ser como o Cristo.
A Igreja só existe para reabsorver os homens em Cristo, para fazer deles pequenos Cristos. E, se isso não acontece, as catedrais, o clero, as missões, os sermões, a própria Bíblia não passam de uma perda de tempo.
“Deus se agrada facilmente, mas não se satisfaz com facilidade” George MacDonald
Quando um homem se volta pata Cristo e parece estar bem (na medida em que alguns de seus maus hábitos estão corrigidos), ele pode pensar que a coisa mais natural seria que sua vida agora transcorresse sem problemas. Quando as tribulacoes chegam – doenças, problemas de dinheiro, novos tipos de tentação —, ele se decepciona. Aos olhos dele, essas coisas foram necessárias antes, para despertá-lo e fazê-lo arrepender-se; mas, e agora: por quê? Porque Deus o está obrigando a progredir ou subir a um novo nível: colocando-o em situações em que ele terá de ser muito mais corajoso, muito mais paciente, muito mais amoroso do que jamais sonhara ser. A nós, tudo isso parece
desnecessário: mas é porque não temos ainda o menor vislumbre do ser tremendo em que ele quer nos transformar.
Se o cristianismo é verdadeiro, por que nem todos os cristãos são evidentemente melhores do que os não-cristãos? se a conversão ao cristianismo não melhora em nada as ações exteriores de um homem — se ele continua sendo tão esnobe, tão rancoroso, tão invejoso ou tão ambicioso quanto era antes – devemos, na minha opinião, suspeitar que sua “conversão” foi, em grande medida, imaginária;
O mundo exterior tem toda razão de julgar o cristianismo pelos seus resultados. O próprio Cristo nos mandou julgar pelos resultados. Quando nós, cristãos, nos comportamos mal ou deixamos de nos comportar bem, fazemos com que o cristianismo perca credibilidade aos olhos do mundo exterior.
Se você atribui a seus próprios méritos aquilo que na verdade foi uma dádiva que Deus lhe concedeu pela natureza, e se contenta com o simples fato de ser bom, ainda não passa de um rebelde: e todos esses dons só servirão para tornar mais terrível a sua queda, mais complicada a sua corrupção, mais desastroso o seu mau exemplo. O diabo já foi um arcanjo; os dons naturais dele estavam tão acima dos seus quanto os seus estão acima dos de um chimpanzé.
Um mundo de pessoas boazinhas, satisfeitas com a própria bondade natural, cegas para tudo o mais, olhando para longe de Deus, estaria tão necessitado de salvação quanto um mundo de infelicidade — e talvez fosse até mais difícil de salvar.
Entregue-se, pois assim você encontrará a si mesmo.Perca a sua vida para salvá-la. Submeta-se à morte, à morte cotidiana de suas ambições e dos seus maiores desejos e, no fim, A morte do seu corpo inteiro: submeta-se a ela com todas as fibras do seu ser, e você encontrará a vida eterna. Não guarde nada para si. Nada que você não deu chegará a ser verdadeiramente seu. Nada que não tiver morrido chegará a ser ressuscitado dos mortos. Se você buscar a si mesmo, no fim só encontrará o ódio, a solidão, o desespero, a fúria, a ruína e a podridão. Se buscar a Cristo, o encontrará; e, junto com ele, encontrará todas as coisas.
FIM
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