No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século.
Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo.
Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura.
A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação.
“O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido.
O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.
EFÁCIO · EDIÇÃO NORTE AMERICANA – de 1984
O escritor e psiquiatra Viktor Frankl costuma perguntar a seus pacientes quando estão sofrendo muitos tormentos grandes e pequenos “Por que não opta pelo suicídio?” É a partir das respostas a esta pergunta que ele encontra, freqüentemente, as linhas centrais da psicoterapia a ser usada. Num caso, a pessoa se agarra ao amor pelos filhos; em outro, há um talento para ser usado, e, num terceiro caso, velhas recordações que vale a pena preservar. Costurar estes débeis filamentos de uma vida semi-destruída e construir com eles, um padrão firme, com um significado e uma responsabilidade – este é o objetivo e o desafio da logoterapia, versão da moderna análise existencial elaborada pelo próprio Dr. Frankl.
O pai, a mãe, o irmão e a esposa de Viktor Frankl morreram em campos de concentração ou em crematórios, e exceto sua irmã, toda sua família morreu nos campos de concentração. Como foi que ele – tendo perdido tudo o que era seu, com todos os seus valores destruídos, sofrendo de fome, do frio e da brutalidade, esperando a cada momento a sua exterminação final – conseguiu encarar a vida como algo que valia a pena preservar?
Busca de sentido
Este livro não trata de fatos e acontecimentos externos, mas de experiências pessoais que milhares de prisioneiros viveram de muitas formas. É a história de um campo de concentração visto de dentro, contada por um dos seus sobreviventes. Não vamos descrever os grandes horrores (já bastante denunciados; embora nem sempre se acredite neles), mas sim as inúmeras pequenas torturas.
Seleção ativa e passiva
O não-iniciado que olha de fora, sem nunca ter estado num campo de concentração, geralmente tem uma idéia errada da situação num campo destes. Imagina a vida lá dentro de modo sentimental, simplifica a realidade e não tem a menor idéia da feroz luta pela existência, mesmo entre os próprios prisioneiros e justamente nos campos menores. É violenta a luta pelo pão de cada dia e pela preservação e salvação da vida. Luta-se sem dó nem piedade pelos próprios interesses, sejam eles do indivíduo ou do seu grupo mais íntimo de amigos.
Existiam prisioneiros que viviam anos a fio em campos de concentração e eram transferidos de um para outro, passando às vezes por dezenas deles. Dentre eles, em geral, somente conseguiam manter-se com vida aqueles que não tinham escrúpulos nessa luta pela preservação da vida e que não hesitavam em usar métodos violentos ou mesmo em trair amigos. Todos nós que escapamos com vida por milhares e milhares de felizes coincidências ou milagres divinos – seja lá como quisermos chamá-los – sabemos e podemos dizer, sem hesitação, que os melhores não voltaram.
Outras coisas surpreendentes que se consegue fazer: passar meses ou anos no campo de concentração sem escovar os dentes, e mesmo assim ter uma gengiva em estado melhor que nunca, apesar da considerável deficiência de vitaminas. Ou usar a mesma camisa durante metade de um ano, até ela ficar completamente irreconhecível; não poder lavar-se de forma alguma, nem parcialmente, por estar congelada a água nos canos do lavatório; não ficar com pus nas mãos feridas e sujas de trabalhar na terra (claro, enquanto não houvesse sintomas de congelamento).
A apatia e a insensibilidade emocional, o desleixo interior e a indiferença – tudo isso características do que designamos de segunda fase dentro das reações anímicas do recluso no campo de concentração – muito cedo também tornam a vítima insensível aos espancamentos diários e em que se cada hora. Esta ausência de sensibilidade constitui uma couraça sumamente necessária da qual se reveste em tempo a alma dos prisioneiros.
A apatia como principal sintoma da segunda fase é um mecanismo necessário de auto-proteção da psique. Reduz-se a percepção da realidade. Toda a atenção e, portanto também os sentimentos se concentram em torno de um único objetivo: pura e simplesmente salvar a vida – a própria e a do outro! Assim se podia ouvir repetidamente os companheiros dizerem quando voltavam do local de trabalho ao campo, à noitinha, numa exclamação bem típica: “Então, passou mais um dia!”
Pior ainda era a situação dos doentes que estavam sendo “poupados”, que podiam ficar deitados na barraca e não precisavam deixar o campo para o trabalho externo. Uma vez consumidos os últimos vestígios de gordura no tecido subcutâneo, ficávamos parecendo esqueletos vestidos de pele dos quais pendiam alguns trapos. Dali para frente podíamos observar como o corpo passava a devorar-se a si mesmo. O organismo consumia sua própria proteína, a musculatura ia definhando. Agora o corpo também não apresentava mais resistência. Morria um atrás do outro na comunidade formada por nosso barracão. Cada qual podia calcular com bastante precisão quem seria o próximo e quando seria sua própria vez.
Mas o que ocupa o pensamento não são as grandes experiências, e, sim, muitas vezes, um fato corriqueiro, as coisas mais insignificantes de sua vida anterior. Na lembrança nostálgica, elas se apresentam sublimes ao prisioneiro. Distanciada da vida real, voltada para o passado, a vida interior recebe um cunho peculiar. O mundo e a vida lá fora estão muito distantes. O espírito tem saudade deles: a gente anda de bonde, chega em casa, abre a porta da frente, o telefone toca; a gente caminha para atender e acende a luz do quarto – são detalhes aparentemente irrisórios como estes que o prisioneiro gosta de lembrar. A doce recordação destes pormenores o comove até as lágrimas!
Arte no campo de concentração
Falamos acima de arte. Arte no campo de concentração será possível isso? Claro, depende do que se chama de arte. Vale dizer que vez por outra havia inclusive teatro improvisado. Desocupava-se provisoriamente um barracão, improvisavam-se alguns bancos de tábuas e elaborava-se um “programa”. E à noite vêm aqueles que passavam relativamente bem no campo, como por exemplo os Capos ou os que trabalhavam no depósito e não precisavam marchar para o trabalho externo; eles vêm para rir ou chorar um pouco, em todo o caso para esquecer. Apresentam-se algumas canções e recitam-se poemas, contam-se ou apresentam-se cenas cômicas, ou mesmo sátiras alusivas à vida no campo de concentração, tudo para ajudar a esquecer. E realmente ajuda! Ajuda a tal ponto que alguns prisioneiros comuns, não privilegiados, vêm para esse teatro mesmo exaustos da labuta do dia, e mesmo perdendo por isso a distribuição da sopa.
Quem fosse privilegiado com uma voz realmente boa, era alvo de inveja, e não pouca. Durante a meia hora de intervalo do meio-dia, nos primeiros tempos de nosso internamento no campo de concentração, era distribuída uma sopa no próprio local da obra (a sopa era providenciada pela firma construtora, que não tinha interesse em investir muito na mesma). Durante esse intervalo podíamos reunir-nos na sala de máquinas ainda em construção; na entrada cada um recebia uma concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós isto representava um deleite musical, ele tinha garantida uma ração dupla de sopa, “do fundo”, ou seja, até com ervilhas.
A vontade de humor – a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva engraçada – constitui um truque útil para a arte de viver. A possibilidade de optar por viver a vida como uma arte, mesmo em pleno campo de concentração, é dada pelo fato de a vida ali ser muito rica em contrastes.
Felicidade é ser poupado
Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava de sustos, os mínimos que fossem. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do corpo, antes de nos deitar. Em si, não era uma operação agradável, porque era preciso despir-nos no barracão quase nunca aquecido, em cujo interior, muitas vezes, pendiam do teto estalactites de gelo. Mas nos dávamos por satisfeitos quando, em tal hora, não havia um alarme aéreo que causasse um blecaute e nos impedisse de completar a operação cata-piolho, o que significava metade da noite sem conseguir dormir. É claro que todas essas miseráveis “alegrias” do campo de concentração representavam por excelência uma felicidade no sentido negativo de Schopenhauer, ou seja, uma isenção de sofrimento, e mesmo esta, conforme mostramos acima, apenas em sentido muito relativo. Alegrias positivas, mesmo pequenas, tínhamos só raras vezes. Lembro-me muito bem que elaboramos certa vez uma espécie de balanço do prazer, cujo saldo resultou em que, no curso de muitas e muitas semanas, tive apenas dois momentos de real contentamento. Foi quando, ao voltar a seus amigos pessoais ou a seus conterrâneos, pescando para eles as batatas no fundo do tacho, para dar aos outros o caldo “de cima”. . . – Mas não faz sentido criticar aqueles prisioneiros para quem a sua panelinha era tudo. Quem vai atirar a primeira pedra em pessoas que dão preferência a seus amigos quando, mais cedo ou mais tarde, se trata de uma questão de vida ou morte? Num caso destes ninguém deveria levantar a pedra antes de se perguntar com sinceridade, à toda prova, se com certeza teria agido de outra forma, estando na mesma situação.
Muito tempo depois de ser libertado do campo de concentração e recomeçar uma vida normal, alguém me chama a atenção para uma fotografia reproduzida numa revista, mostrando prisioneiros num campo de concentração amontoados em seus beliches coletivos, a fitar de olhar vazio e observador. “Você não acha terrível isto, esses olhares horripilantes, e tudo o mais…?” – “Como assim?” pergunto eu – e de fato não consigo entender. Pois naquele instante surge um quadro dentro de mim. Cinco horas da manhã. Lá fora, noite escura ainda. Estou deitado sobre as duras tábuas de um galpão de chão batido, no qual cerca de setenta companheiros estão “em repouso”, isto é, deram-nos baixa e não precisamos deixar o campo de concentração para marchar rumo ao trabalho. Não precisamos nem entrar em ordem-unida. Podemos ficar o dia inteiro deitados ou encostados em nosso apertado cantinho no barracão, devaneando, esperando pela distribuição, uma vez por dia, da ração de pão naturalmente reduzida para os doentes “em repouso”, e pela distribuição, uma vez por dia, da ração da sopa ainda mais aguada e ainda mais reduzida para essa categoria. Mas estamos muito satisfeitos, sim, até felizes, apesar de tudo! Aconchegamos os nossos corpos para evitar toda perda desnecessária de calor e estamos apáticos e lerdos demais para mexer um dedo sequer enquanto não for imprescindível, quando ouvimos lá de fora estridentes apitos e brados de comando, da área de formação onde acaba de chegar a turma de trabalho da noite. Abre-se a porta com ímpeto, a nevasca invade o barracão. Uma figura coberta de neve, um companheiro exausto entra cambaleando para descansar alguns minutos sobre uma tábua. Porém o chefe do barracão o bota para fora, porque durante a formatura de chamada é estritamente proibido permitir a entrada no galpão de repouso a quem quer que seja que não tenha ali o seu lugar. Como tenho pena dele! Quão feliz estou, neste momento, por não estar na pele dele, mas “em repouso”, podendo entregar-me a devaneios no meu galpão. Afinal era como salvar a vida, receber dois dias de repouso na enfermaria no setor de doentes e, além disso, ainda ganhar de quebra mais dois dias.
Sentíamo-nos feito ovelhas num rebanho, que somente sabem, pensam e querem uma coisa: escapar aos ataques dos cães e, num momento de paz, poder comer um pouco. Como ovelhas que procuram temerosamente enfiar-se para o meio do rebanho amontoado, cada um de nós tentava postar-se no centro da fileira de cinco homens e, se possível, também no meio de todo o grupo, para assim ter as melhores chances de escapar aos golpes dos guardas que marchavam ao lado da coluna, à sua frente e na retaguarda. Essa posição no meio apresentava ainda uma vantagem nada desprezível, ou seja, a da proteção contra o vento.
Irritabilidade
Até aqui descrevemos a apatia, a dessensibilização do íntimo, que toma conta do prisioneiro durante a sua estada no campo de concentração, fazendo a sua vida anímica baixar, de modo geral, a um nível mais primitivo, tornando objeto do destino ou do arbítrio dos guardas, destituído de vontade, tanto que ele acaba cheio de medo de tomar nas mãos o seu destino, ou seja, de enfrentar decisões. A apatia tem ainda outras causas e não pode ser entendida apenas como mecanismo de autodefesa da alma, no sentido mencionado. Há também causas de natureza fisiológica. É o que vale também para a irritabilidade, a qual, além da apatia, representa uma das mais eminentes características da psique do prisioneiro. Entre as causas fisiológicas estão em primeiro lugar a fome e a falta de sono. Como qualquer um sabe, mesmo na vida normal ambos os fatores tornam a pessoa apática e irritadiça. No campo de concentração, o sono insuficiente se deve em parte aos insetos parasitas a proliferar livremente na mais inconcebível falta de higiene, e à inimaginável concentração de pessoas nos barracões.
Aquilo que sucede interiormente com a pessoa, aquilo em que o campo de concentração parece “transformá-la”, revela ser o resultado de uma decisão interior. Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode decidir de alguma maneira no que ela acabará dando, em sentido espiritual: um típico prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa humana, que também ali permanece sendo ser humano e conserva a sua dignidade.
A depreciação total da realidade oriunda da forma provisória de existência do recluso acaba seduzindo a pessoa a entregar os pontos completamente, a abandonar-se a si mesma, visto que de qualquer forma “tudo está perdido”. Essas pessoas estão se esquecendo de que muitas vezes é justamente uma situação exterior extremamente difícil que dá à pessoa a oportunidade de crescer interiormente para além de si mesma. Em vez de transformar as dificuldades externas da vida no campo de concentração numa prova de sua força interna, elas não levam a sério a existência atual, e depreciam-na para algo sem real valor. Preferem fechar-se a esta realidade ocupando-se ainda apenas com a vida passada.
A divisa que necessariamente orientou todos os esforços psicoterapêuticos ou psico-higiênicos junto aos prisioneiros talvez encontre sua melhor expressão nas palavras de Nietzsche: “Quem tem por que viver agüenta quase qualquer como”. Portanto era preciso conscientizar os prisioneiros, à medida em que era dada a oportunidade, do “porquê” de sua vida, do seu alvo, para assim conseguir que eles estivessem também interiormente à altura do terrível “como” da existência presente, resistindo aos horrores do campo de concentração.
Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é única e exclusiva em todo o cosmo-centro deste destino sofrido. Ninguém pode assumir dela isso, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta este sofrimento está também a possibilidade de uma vitória única e singular.
A vida está repleta de oportunidades para dotá-la de sentido. Os meus companheiros mal se mexiam, estirados pelo chão. Vez por outra, ouvia-se um suspiro doloroso. Dei a entender que a vida humana tem sentido sempre e em todas as circunstâncias, e que esse infinito significado da existência também abrange sofrimento, morte e aflição. Pedi àqueles pobres coitados, que há tempo me escutavam na escuridão total do barracão, que olhassem de frente para a situação em que estávamos, por mais difícil que ela fosse, e não desesperassem, mas recobrassem o ânimo, cientes de que, mesmo perdida, a nossa luta, nossos esforços não perderiam seu sentido e dignidade.
Afirmar que alguém fazia parte da guarda do campo de concentração, ou que foi prisioneiro no campo não quer dizer nada. A bondade humana pode ser encontrada em todas as pessoas e ela se acha também naquele grupo que à primeira vista deveria ser sumariamente condenado. As delimitações se sobrepõem. Não podemos simplificar as coisas dizendo: “Os prisioneiros são anjos, e os guardas são demônios”.
Ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.
Ninguém tem o direito de praticar injustiça, nem mesmo aquele que sofreu injustiça.
Além da deformação que ameaça a pessoa repentinamente liberta da pressão anímica, ainda existem duas outras experiências fundamentais que podem colocá-la em perigo, prejudicá-la e deformá-la sob o ponto de vista caracteriológico. São a amargura e a decepção da pessoa que, livre, volta à sua vida antiga. A amargura é provocada por experiências diversas nos contatos com outras pessoas no antigo ambiente de vida de quem sai do campo de concentração.
Antes, ao tratarmos as tentativas de reerguer psicologicamente a pessoa que está no campo de concentração, dissemos que era preciso orientá-la para um alvo no futuro, lembrá-la sempre de novo que a vida estaria esperando por ela, que havia alguém esperando por ela. E depois? Depois acaba havendo um ou outro que precisa constatar que não há mais ninguém que ficasse esperando por ele. . .
Ai daquele para quem não existe mais a razão das suas forças no campo de concentração – o ente querido. Ai daquele que experimenta na realidade aquele momento que sonhou mil vezes, e o momento vem diferente, completamente diferente do que fora imaginado. A pessoa pega o bonde, vai até aquela casa que por anos a fio imaginava enxergar diante de si e aperta a campainha – bem assim como tanto desejara em seus mil sonhos. . . Mas quem abre a porta não é a pessoa que deveria abri-la – ela jamais voltará a lhe abrir a porta. . .
Todos no campo de concentração sabíamos e dizíamos um ao outro: Não há felicidade sobre a terra capaz de compensar nosso sofrimento.
A logoterapia se concentra mais no futuro, ou seja, nos sentidos a serem realizados pelo paciente em seu futuro. (A logoterapia é, de fato, uma psicoterapia centrada no sentido.) Ao mesmo tempo a logoterapia tira do foco de atenção todas aquelas formações tipo círculo vicioso e mecanismos retro- alimentadores que desempenham papel tão importante na criação de neuroses. Assim é quebrado o autocentrismo (self center edness) típico do neurótico, ao invés de se fomentá-lo e reforçá-lo constantemente.
Obviamente esta formulação simplifica demais as coisas; mesmo assim a logoterapia de fato confronta o paciente com o sentido de sua vida e o reorienta para o mesmo. E torná-lo consciente desse sentido pode contribuir em muito para a sua capacidade de superar a neurose.
Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por esta razão costumo falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer) no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo “busca de superioridade”.
A vontade de sentido
A busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma “racionalização secundária” de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido somente por aquela determinada pessoa.
Anos atrás, realizou-se na França uma pesquisa de opinião pública. Os resultados mostraram que 89% das pessoas consultadas admitiram que o indivíduo precisa de “algo” em função do qual viver. E 61 % admitiram haver algo ou alguém em suas próprias vidas, pelo qual estariam até prontas a morrer.
Outra pesquisa estatística, com dados de 7.948 alunos, em 48 universidades, foi conduzida por cientistas sociais da Universidade Johns Hopkins. Seu informe preliminar é parte de um estudo de dois anos patrocinado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental. Perguntados sobre o que consideravam “muito importante para eles naquele momento, 16% dos estudantes responderam “ganhar muito dinheiro”, 78% afirmaram que o seu principal objetivo era “encontrar um propósito e sentido para minha vida”.
Frustração existencial
A vontade de sentido também pode ser frustrada; neste caso a logoterapia fala de “frustração existencial”. O termo “existencial” pode ser usado de três maneiras: referindo-se (1) à existência em si mesma, isto é, ao modo especificamente humano de ser; (2) ao sentido da existência; (3) à busca por um sentido concreto na existência pessoal, ou seja, à vontade de sentido.
Frustração existencial também pode resultar em neuroses. Para esse tipo de neuroses a terapia cunhou o termo “neuroses noogênicas”, a contrastar com as neuroses na significação habitual da palavra, isto é, as neuroses psicogênicas. Neuroses noogênicas têm sua origem não na dimensão psicológica, mas antes na dimensão “noológica” (do termo grego noos que significa “mente”) da existência humana. Este é outro conceito logoterapêutico que designa qualquer coisa pertinente à dimensão especificamente humana.
Neuroses noogênicas
Neuroses noogênicas não surgem de conflitos entre impulsos e instintos, mas de problemas existenciais. Entre esses problemas, a frustração da vontade de sentido desempenha papel central.
É óbvio que em casos noogênicos a terapia apropriada e adequada não é a psicoterapia de um modo geral, mas antes a logoterapia; ou seja, uma terapia que ousa penetrar na dimensão especificamente humana.
A preocupação ou mesmo o desespero da pessoa sobre se a sua vida vale a pena ser vivida é uma angústia existencial, mas de forma alguma uma doença mental. É bem possível que interpretar aquela em termos desta motive um médico a soterrar o desespero existencial do seu paciente debaixo de um monte de tranqüilizantes. Sua função, no entanto, é de pilotar o paciente através das suas crises existenciais de crescimento e desenvolvimento.
Noodinâmica
A busca por sentido certamente pode causar tensão interior em vez de equilíbrio interior. Entretanto, justamente esta tensão é um pré-requisito indispensável para a saúde mental. Ouso dizer que nada no mundo contribui tão efetivamente para a sobrevivência, mesmo nas piores condições, como saber que a vida da gente tem um sentido. Há muita sabedoria nas palavras de Nietzsche: “Quem tem por que viver suporta quase todo como.” Nestas palavras eu vejo um lema válido para qualquer psicoterapia.
O que o ser humano realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente. O que ela necessita não é descarga de tensão a qualquer custo, mas antes o desafio de um sentido em potencial à espera de seu cumprimento. O que o ser humano precisa não é de homeostase, mas daquilo que chamo de “noodinâmica”, isto é, da dinâmica existencial num campo polarizado de tensão, onde um pólo está representado por um sentido a ser cumprido e o outro pólo, pela pessoa que deve cumprir.
Cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir cumprimento. Nisto a pessoa não pode ser substituída, nem pode sua vida ser repetida.
O papel do logoterapeuta consiste em ampliar e alargar o campo visual do paciente de modo que todo o espectro de sentido e potencial se torne consciente e visível para ele.
Até aqui mostramos que o sentido da vida sempre se modifica, mas jamais deixa de existir. De acordo com a logoterapia, podemos descobrir este sentido na vida de três diferentes formas:
1. criando um trabalho ou praticando um ato;
2. experimentando algo ou encontrando alguém;
3. pela atitude que tomamos em relação ao sofrimento inevitável.
A primeira, o caminho da realização, é bastante óbvia. A segunda e a terceira necessitam de uma melhor elaboração.
A segunda maneira de encontrar um significado na vida é experimentando algo – como a bondade, a verdade e a beleza, experimentando a natureza e a cultura ou, ainda, experimentando outro ser humano em sua originalidade própria – amando-o.
O sentido do sofrimento
Não devemos esquecer nunca que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada. Porque o que importa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado, e que consiste em transformar uma tragédia pessoal num triunfo, em converter nosso sofrimento numa conquista humana.
A transitoriedade da vida
Entre as coisas que parecem tirar o sentido da vida humana estão não apenas o sofrimento, mas também a morte. Nunca me canso de dizer que os únicos aspectos realmente transitórios da vida são as potencialidades; porém no momento em que são realizadas, elas se transformam em realidades; são resgatadas e entregues ao passado, no qual ficam a salvo e resguardadas da transitoriedade. Isto porque no passado nada está irremediavelmente perdido, mas está tudo irrevogavelmente guardado.
O neurótico que, aprende a rir de si mesmo pode estar a caminho da autonomia (self management), talvez da cura.
Confuso Estamos vendo que a ansiedade antecipatória precisa ser combatida através da intenção paradoxal; à hiperintenção bem como à hiper-reflexão é preciso opor a desreflexão; desreflexão, em última análise, não é possível a não ser através de uma orientação do paciente para a sua vocação e missão específica na vida. (Esta
convicção tem o apoio de ALLPORT, que escreveu: “Na medida em que o empenho é transferido do conflito para alvos fora da própria pessoa (selfless), a vida como um todo se torna mais sadia, mesmo que a neurose possivelmente jamais desapareça por completo.” (Op. cit., p. 95))
Não é a preocupação do neurótico consigo mesmo, seja ela de comiseração ou de desprezo, que vai romper o círculo vicioso; a chave para a cura é a auto- transcendência!
Sem dúvida, o ser humano é um ser finito e sua liberdade é restrita. Não se trata de estar livre de fatores condicionantes, mas sim da liberdade de tomar uma posição frente aos condicionantes. Como eu disse certa vez: “Sendo professor em dois campos, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente de até que ponto o ser humano está sujeito às condições biológicas, psicológicas e sociológicas. Mas além de ser professor nestas duas áreas sou um sobrevivente de quatro campos – campos de concentração – e como tal também sou testemunha da surpreendente capacidade humana de desafiar e vencer até mesmo as piores condições concebíveis.”
Da mesma forma, todo ser humano tem a liberdade de mudar a qualquer instante.
O ser humano é capaz de mudar o mundo para melhor se possível, e de mudar a si mesmo para melhor se necessário.
No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. A pessoa humana tem dentro de si ambas as potencialidades; qual ser concretizada, depende de decisões e não de condições.
Como pode a vida conservar o seu sentido potencial apesar dos seus aspectos trágicos? No final das contas, “dizer sim à vida apesar de tudo”, para usar o título de um livro meu em alemão, pressupõe que a vida potencialmente tem um sentido em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais miseráveis.
E isso, por sua vez, pressupõe a capacidade humana de transformar criativamente os aspectos negativos da vida em algo positivo ou construtivo.
A fé e o amor não podem ser impostos ou exigidos. Mas a felicidade não pode ser buscada, precisa ser decorrência de algo. Deve-se ter uma razão para “ser feliz”. Uma vez que a razão é encontrada, no entanto, a pessoa fica feliz automaticamente. Na nossa maneira de ver, o ser humano não é alguém em busca da felicidade, mas sim alguém em busca de uma razão para ser feliz, através – e isto é importante – da manifestação concreta do significado potencial inerente e latente numa situação dada.
As pessoas têm o suficiente com o que viver, mas não têm nada por que viver; têm os meios, mas não têm o sentido, alguns não tem nem os meios.
Cinquenta anos atrás, publiquei um estudo sobre um tipo específico de depressão que havia diagnosticado em casos de pacientes jovens sofrendo do que eu chamava de “neurose de desemprego”. E consegui demonstrar que esta neurose tinha realmente a sua origem numa dupla identificação errônea: estar sem emprego era considerado o mesmo que ser inútil, e ser inútil era considerado o mesmo que levar uma vida sem sentido. Consequentemente, sempre que eu conseguia persuadir os pacientes a trabalhar voluntariamente em organizações de jovens, educação de adultos, bibliotecas públicas e atividades similares – em outras palavras, quando preenchiam o seu abundante tempo livre com alguma atividade não remunerada mas significativa e portadora de um sentido – a sua depressão desaparecia, embora a sua situação econômica não houvesse mudado e a sua fome continuasse a mesma. A verdade é que o ser humano não vive apenas de bem-estar.
Não é necessário dizer que nem todo caso de depressão pode ser atribuído a um sentimento de falta de sentido. Tampouco o suicídio – a que a depressão às vezes leva a pessoa – sempre é resultado de um vazio existencial. Contudo, mesmo que todo e qualquer caso de suicídio não tenha sido levado a cabo por causa de um sentimento de falta de sentido, é bem possível que o impulso de tirar a vida tivesse sido superado se a pessoa tivesse estado consciente de algum sentido e propósito pelos quais valesse a pena viver.
Como ensina a logoterapia, há três caminhos principais através dos quais se pode chegar ao sentido na vida. O primeiro consiste em criar um trabalho ou fazer uma ação. O segundo está em experimentar algo ou encontrar alguém; em outras palavras, o sentido pode ser encontrado não só no trabalho, mas também no amor.
Será que isso significa que o sofrimento é indispensável à descoberta de sentido? De modo algum. Insisto apenas em que o sentido está disponível apesar do – não, através do – sofrimento, desde que, como ressaltado na segunda parte deste livro, o sofrimento seja inevitável. Mesmo se a pessoa não puder mudar a situação que causa seu sofrimento, pode escolher a sua atitude.
O nulismo não afirma que não existe nada, mas afirma que tudo é desprovido de sentido.